quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

A aquisição da palavra e a função reguladora da linguagem
APORTES PEDAGÓGICOS

INTRODUÇÃO
A linguagem é atividade essencial do conhecimento do mundo do ponto de vista da aquisição. É a espaço em que a criança se constitui como sujeito e em que os objetos do mundo físico, os papéis das palavras e as categorias Iingüísticas não existem inicialmente, mas se instauram através da experiência ao longo do desenvolvimento infantil.
O desconhecimento do desenvolvimento normal da criança na aquisição da Iinguagem e dos mecanismos de regulação da sua ação em decorrência do uso da palavra pelo adulto, leva o profissional a cometer equívocos no tratamento e/ou no encaminhamento da criança, perdendo um tempo considerável e, muitas vezes, crucial para o adequado atendimento. Por outro lado o desconhecimento pode acarretar a rotulação do sujeito e a consideração um estágio normal como transtorno quando, de fato, não se soube avaliar as diferenças individuais no desenvolvimento normal da criança.
Assim, é necessário compreender como o modo como as crianças adquirem e desenvolvem a linguagem essa operacionalização até que a palavra expresse seu pensamento e, como ocorrem se dá a regulação dos processos psíquicos do sujeito através da palavra. É imprescindível conhecer esses aspectos do desenvolvimento infantil e as transformações que vão se operando gradativamente no sujeito tanto para fazer encaminhamentos quanto para diagnosticar e tratar adequadamente os problemas apresentados nesse campo.
Primeiramente se tratará, em termos gerais, do significado, do desenvolvimento e do sentido da palavra; depois, mais especificamente, do desenvolvimento da palavra / linguagem em relação ao desenvolvimento infantil, do surgimento do conceito e da função reguladora da palavra / linguagem das ações da criança, assim como das implicações psicopedagógicas.



O SIGNIFICADO DA PALAVRA

A palavra é a unidade fundamental da língua.
Luria (1985) ensina que o elemento fundamental da linguagem é a palavra, a qual designa coisas, individualiza as características desses objetos e os reúne em determinadas categorias, designa também ações e relações entre as coisas, ou seja, "a palavra codifica nossa experiência”.
A palavra tem uma estrutura complexa com dois componentes básicos: representação material e significado; cada palavra constitui um objeto, gerando no sujeito uma imagem deste objeto.
A representação material – função básica da palavra – é a função representativa da palavra, considerada a mais importante por ser constituinte da linguagem que permite ao homem evocar as imagens de objetos correspondentes até quando estão ausentes.
O significado – análise dos objetos – função mais complexa que permite distinguir as propriedades dos objetos e relacioná-los segundo a categoria; esta função é meio de abstração e generalização do objeto, ou seja, através da análise dos significados das partes componentes de uma palavra que nomeia um objeto se pode conhecer as várias significações que a construíram – o autor analisou a palavra russa que identifica tinteiro, a qual inicialmente parecia muito simples e se revelou complexa, indicando que este objeto está relacionado com tinta, serve para realizar alguma coisa e é um recipiente, ou seja, a análise da morfologia da palavra revela a complexidade de sua função. Essa análise pode ser utilizada para descobrir a função de um objeto desconhecido quando se conhece a palavra que serve para designá-lo ou, no caso dessa palavra inexistir, para se criar uma palavra adequada para nomeá-lo e que carregue todo o significado da sua função.
Vygotsky (1993) atribui a própria gênese da palavra a característica de imagem, ensinando que "a palavra primitiva não é um símbolo direto de um conceito, mas sim uma imagem, uma figura, um esboço mental de um conceito, um breve retrato dele – na verdade, uma pequena obra de arte. Ao nomear um objeto por meio de tal conceito pictórico, o homem relaciona-o a um grupo que contém certo número de outros objetos”.
Luria e Yudovich (1985) dizem que a palavra, na sua função básica, indica o objeto correspondente no mundo externo e abstrai e isola o sinal necessário, generaliza os sinais percebidos e os relaciona com determinadas categorias.
Esses autores citam um exemplo para mostrar que a palavra relacionada à percepção direta do objeto isola seus traços fundamentais: ao nomear o objeto percebido de "copo" e acrescentar o seu papel fundamental "serve para beber", isolam-se suas propriedades essenciais e se inibe as menos essenciais como o peso e a forma exterior; ao assinalar com a palavra "como" (para que serve) qualquer copo, independente da forma, toda a percepção desse objeto é permanente e generalizada.
Lenin (1985) observou que o objeto (nomeado) de conhecimento não são as coisas em si, mas principalmente a relação entre elas; o mesmo objeto pode ser o objeto de estudo da física, da economia, da estética, etc., concluindo que as coisas não são captadas somente pela forma imediata, mas também pelos reflexos de suas relações, ou seja, a homem transcende aos Iimites sensoriais da experiência imediata e forma conceitos abstratos que permitem penetrar mais profundamente na essência delas.

Desenvolvimento do significado da palavra

A referência objetal da palavra não está terminada na criança aos três primeiros anos de vida, tendo a palavra alcançado seu desenvolvimento pleno de tal forma que daí em diante haveria apenas um enriquecimento do vocabulário como se pensava anteriormente, pois, segundo Luria (1985), o significado da palavra não conclui seu desenvolvimento neste período. Depois que o desenvolvimento da palavra alcança seu significado objetal exato e estável, desenvolve-se em direção ao seu referencial de função generalizadora, chegando ao seu significado.
Esta hierarquia estrutural, com categorias subordinadas entre si, constitui-se no "sistema de conceitos abstratos, diferenciando-se dos enlaces situacionais imediatos, característico da palavra nos estágios iniciais do desenvolvimento" mostrando que o significado muda ao mesmo tempo em que os processos psíquicos se realizam. Luria (1985)
A correlação da palavra com as significados abstratos generalizadores (função generalizadora) não é sempre a mesma, segundo Luria (1985), pois cada grupo de palavras tem diferenças essenciais como os substantivos em que os elementos figurados concretos são muito fortes (pinheiro, cão) ou são afastados pelo significado abstrato generalizador (árvore, animal); nos adjetivos e nos verbos (surgidos depois dos substantivos) os componentes materiais ficam em segundo plano e a discriminação da qualidade ou da ação, abstraídas do objeto remanescente, compõe o significado básico dessas palavras.
Para Vygotsky (1993 / p.70) a palavra, tomada como um estímulo e mediada pelo signo, tem como reação o resgate de conceitos, imagens e sentimentos pelo sujeito, relacionados ao contexto da produção do estímulo:
[...] o sentido de uma palavra á a soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência. É um todo complexo, fluido e dinâmico, que tem várias zonas de estabilidade desigual. O significado é apenas uma das zonas do sentido, a mais estável e precisa. Uma palavra adquire o seu sentido no contexto em que surge; em contextos diferentes, altera o seu sentido. O significado permanece estável ao longo de todas as alterações do sentido. O significado dicionarizado de uma palavra nada mais é do que uma pedra no edifício do sentido, não passa de uma potencialidade que se realiza de formas diversas na fala.

Esse pensamento pode ser complementado com a afirmação que “a palavra não alcança sua significação completa exceto numa sentença, isto é, numa relação sintática", ou seja, a operação de significação não pode ser deduzida exclusivamente da palavra e do seu conceito, mas sim do contexto na qual está inserida, do seu significado.

O SENTIDO DA PALAVRA

O sentido da palavra deriva do "processo de escolha do significado adequado entre todo um sistema de alternativas que surgem", ou seja, o sistema de relações destacado entre muitos significados possíveis; o sentido da palavra, assim, depende da tarefa concreta que o sujeito tem diante de si e da situação concreta em que ele vai empregar a palavra; o significado pode, então, ser diverso em várias situações, mesmo que exteriormente permaneça o mesmo.
Além da estrutura morfológica, a entonação na pronúncia da palavra também permite que se mude o seu sentido, escolhendo um específico entre tantos outros.
Assim, o emprego real da palavra é a escolha do sentido adequado ao que se quer expressar entre os possíveis significados e só com um sistema de escolha funcionando com precisão, com a realce do sentido adequado e a inibição das outras alternativas, se pode desenvolver com êxito a comunicação.

O SURGIMENTO DO CONCEITO

Compreender não é o mesmo que perceber: é aperceber, isto é, entender o verdadeiro significado conceitual do percebido.
Para Vygotsky (1992) a aquisição da linguagem pela criança modifica suas funções mentais superiores: ela dá uma forma definida ao pensamento, possibilita o aparecimento da imaginação, o uso da memória e o planejamento da ação. Neste sentido, a Iinguagem sistematiza a experiência direta dos sujeitos e, por isso, adquire uma função central no desenvolvimento cognitivo, reorganizando os processos que nele estão em andamento.
Todas as funções psíquicas superiores são processos mediados, e os signos constituem a meio básico para dominá-las e dirigi-Ias. O signo mediador é incorporado à sua estrutura como parte indispensável, na verdade a parte central do processo como um todo. Na formação de conceitos, esse signo é a palavra, que em princípio tem papel de meio na formação de um conceito e, posteriormente, toma-se a seu símbolo.
As concepções de Vygotsky sobre o processo de formação de conceitos remetem às relações entre pensamento e Iinguagem, à questão cultural no processo de construção de significados pelos indivíduos, ao processo de internalização e ao papel da escola na transmissão de conhecimento, que é de natureza diferente daqueles aprendidos na vida cotidiana. Propõe uma visão de formação das funções psíquicas superiores como internalização mediada pela cultura.
Luria (1986) estudou profundamente as experiências de Vygotsky nessa área onde desenvolveu um grande trabalho, reconhecido pelos estudiosos sobre a formação de conceitos. Os conceitos espontâneos ou do cotidiano, também chamados de senso comum, são aqueles que não passaram pelo crivo da ciência. Os conceitos científicos são formais, organizados, sistematizados, testados pelos meios científicos, que em geral são transmitidos pela escola e que aos poucos vão sendo incorporados ao senso comum.
Os conceitos científicos, conforme Luria (1986), adquiridos no processo de aprendizagem da criança, são formulados verbalmente (pela mediação do professor) e só mais tarde ela tem condições de juntar a eles um conteúdo válido. A criança adquire consciência dos seus conceitos espontâneos relativamente tarde: a capacidade de defini-los por meio de palavras, de operar com eles à vontade, aparece muito tempo depois de adquirir os conceitos. Ela possui o conceito, isto é, conhece o objeto ao qual o conceito se refere, mas não está consciente do seu próprio ato de pensamento. O autor enfatiza que na formação dos conceitos comuns (espontâneos ou do cotidiano – se formam a partir da atividade prática e da experiência figurada direta) predominam as relações circunstanciais concretas e nos conceitos científicos (formam-se com a participação das operações lógico-verbais), as relações lógicas abstratas.
Segundo Oliveira (1992), Vygotsky propôs o percurso genético do desenvolvimento do pensamento conceitual em três estágios. No primeiro estágio, a criança forma conjuntos sincréticos, agrupando objetos com base em nexos vagos, subjetivos e baseados em fatores perceptuais como a proximidade espacial, por exemplo. Esses
nexos são instáveis e não relacionados aos atributos relevantes dos objetos. O segundo estágio é chamado por Vygotsky de pensamento por complexos: “em um complexo, as ligações entre seus componentes são concretas e factuais, e não abstratas e lógicas”.
No terceiro estágio, onde ocorre a formação dos conceitos propriamente ditos, a criança agrupa objetos com base num único atributo, sendo capaz de abstrair características isoladas da totalidade da experiência concreta.
Com base nas experiências realizadas por Vygotsky, Luria observa que em diferentes etapas o significado da palavra encobre diferentes formas de generalização e diferentes processos psicológicos e, assim, evolui. Enfatiza também o autor a importância diagnóstica da formação dos conceitos, estabelecendo “o nível que a criança pode atingir, estando numa fase inferior do desenvolvimento intelectual, e as peculiaridades do processo de formação dos conceitos que caracterizam determinados estados patológicos da atividade cerebral”.

O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA X DESENVOLVIMENTO DA PALAVRA

De acordo com Vygotsky (1992), todas as atividades cognitivas básicas do indivíduo ocorrem de acordo com sua história social e acabam se constituindo no produto do desenvolvimento histórico-social de sua comunidade. Neste processo de desenvolvimento cognitivo, a linguagem tem papel crucial na determinação de como o sujeito vai aprender a pensar, uma vez que formas avançadas de pensamento são transmitidas à criança através de palavras.
A palavra, segundo Luria e Yudovich (1985), influi sobre a criança, enriquecendo e aprofundando sua percepção direta e conformando sua consciência.
Inicialmente a criança não tem consciência da composição verbal da palavra que vai surgindo no decorrer de um período; nas primeiras etapas do desenvolvimento a criança confunde a palavra com o objeto. Os experimentos que evidenciaram o caminho percorrido pela criança nessa tomada de consciência da estrutura verbal da Iinguagem foram propostos por Vygotsky em 1856 e depois por Karpona em 1967.
As etapas normais de aquisição da linguagem estão especificadas no Quadro 1 e a variabilidade dessa aquisição, ou seja, as variações dentro do que é considerado normal, está esquematizada no Quadro 2.

Quadro 1 - Etapas normais da aquisição da linguagem


0 – 3 meses


4 – 6 meses



7 – 9 meses





10 – 12 meses







12 – 18 meses



2 anos




3 anos


4 anos


Produção de sons (choro / consolo, gritos, barulhos); discriminação se sons familiares.

Discriminação dos sons da fala – compreensão das palavras – balbucio, produção de vogais e depois de consoantes, expressões faciais.

Balbucio duplicado (bababa) de forma interativa e produção gestual comunicativa – aponta para objetos.

Primeiras palavras reais + jargão (balbucio com fala).

Contato visual, expressões faciais, vocalizações e gestos – se faz entender por meio dessas formas de comunicação antes mesmo de falar.

Produção de 10 – 50 palavras e algumas frases de algumas palavras – chama a atenção para receber uma resposta verbal do adulto.

Produção 150 – 200 palavras e frases de a 3 palavras – nomeia objetos quando inquirida.

Sentenças gramaticais – artigo, preposição, plural – formula questões.

Clara sintaxe – completa inteligibilidade é esperada aos 4 anos e 6 meses – meninas em média um pouco antes – para fonologia do português e do inglês.



Fonte: Pedroso e Rotta (2006)


Quadro 2 – Variabilidade normal da aquisição da linguagem





Em 25% das crianças








Em 90% das crianças


I – Compreensão visual – com 10 meses apontam para os objetos desejados espontaneamente.

II – Compreensão auditiva – com 25,8 meses nomeiam e explicam a função de objetos perguntados pelo examinador.

III – Expressão falada – com 27,3 meses nomeiam e explicam a função de 2 objetos espontaneamente.


I – Compreensão visual – com 17,7 meses apontam para os objetos desejados espontaneamente.

II – Compreensão auditiva – com 32,6 meses nomeiam e explicam a função de objetos perguntados pelo examinador.

III – Expressão falada – com 34,4 meses nomeiam e explicam a função de 2 objetos espontaneamente.



Fonte: Pedroso e Rotta (2006)

Como se pode observar nos quadros, no inicio do desenvolvimento da criança a consciência tem caráter afetivo. Segundo Luria (1985) esse caráter reflete o mundo afetivamente; a seguir a consciência passa ao concreto imediato, assim como as palavras que se refletem em seu mundo; no estágio seguinte a consciência passa a ser lógica, verbal e abstrata mesmo que os estágios anteriores permaneçam encobertos.
O significado da palavra muda substancialmente quanto ao seu significado no decorrer do desenvolvimento da criança: inicialmente o papel fundamental da palavra e desempenhado pelo afeto, pelo agradável ou desagradável; mais tarde, pela imagem imediata, a memória, reproduzindo uma situação determinada; para o adulto, são os enlaces lógicos presentes nas palavras que configuram o papel principal.
A partir do momento que a criança descobre que tudo tem um nome, cada novo objeto que surge representa um problema que ela resolve atribuindo-lhe um nome. Quando lhe falta a palavra para nomear este novo objeto, a criança recorre ao adulto. Esses significados básicos de palavras assim adquiridos funcionarão como embriões para a formação de novos e mais complexos conceitos.

Função reguladora da linguagem

Levando-se em consideração essas assertivas, caso que nos interessa diretamente no fazer psicopedagógico, examina-se as considerações de autores como Vygotsky e Luria, em relação à subordinação da criança ao adulto: quando a criança adquire uma palavra que designa um objeto em particular e serve como sinal de uma ação concreta, ela se subordina a esta palavra, assim como à instrução verbal do adulto. A palavra, portanto, regula a conduta da criança, organizando sua atividade num nível mais alto e qualitativamente novo. "Esta subordinação das reações da criança à palavra de um adulto é o começo de uma longa cadeia de formação de aspectos complexos da sua atividade consciente e voluntária”.
Luria (1985) enfatiza que "além da função cognoscitiva da palavra e sua função como instrumento de comunicação, há sua função pragmática ou reguladora; a palavra não é somente um instrumento de reflexo da realidade, é o meio de regulação da conduta".
Vygotsky (1993) ensina que é indispensável examinar como os processos voluntários se formam no curso do desenvolvimento da atividade concreta do sujeito e na sua comunicação com o adulto, cuja organização está baseada no desenvolvimento lingüístico da criança.
Segundo Luria (1985), a primeira etapa da função reguladora da Iinguagem da criança – função base do comportamento voluntário – é a capacidade de subordinação à instrução verbal do adulto e, a partir dessa "subordinação primitiva" forma-se o ato voluntário.
Quando a mãe nomeia um objeto e junta a ele um gesto indicador, está reorganizando a atenção da criança e separando o objeto mencionado dos demais, assim a criança começa a se subordinar a ação da linguagem do adulto.
Para fortalecer o papel regulador da linguagem nessa etapa (até 2-3 anos), é preciso assinalar o objeto nomeado com gestos ou indicações, reforçando-os pela ação, permitindo que a criança fixe melhor e posse cumprir a tarefa corretamente.
Pais, alunos e professores precisam entender que a dislexia, ao contrário do que definem alguns profissionais de educação terapêutica ou de saúde mental, não é, definitivamente, uma doença ou transtorno. Para os que atuam, em sala de aula, com disléxicos no ensino fundamental ou no ensino médio, cabe o juízo critico e o discernimento pedagógico de que a dislexia é, apenas, uma dificuldade específica no aprendizado da leitura no período escolar. Os disléxicos podem aprender. Aliás, todas as crianças especiais são aprendentes em potencial. Se fracassam no período escolar, não fracassam sozinhas: a escola, do gestor ao professor, também fracassou.
Entender a dislexia como dificuldade e não como patologia, por exemplo, não quer dizer que nós educadores, para podermos explicar as dificuldades leitoras, não possamos recorrer a aportes teóricos das ciências da saúde ou da linguagem clínica, especialmente as pesquisas na Neurologia e Psicologia Clinica, que nos ajudam, real mente, a compreender o que ocorre durante a aquisição, desenvolvimento e processamento da linguagem escrita dos disléxicos. Conhecer o cérebro dos disléxicos é um passo que ilumina a atuação profissional dos docentes, pais e os próprios alunos.
A Psicologia Cognitiva pode e deve ser uma grande aliada dos profissionais de educação que atuam na intervenção pedagógica (quando o método escolar de ensino de leitura falha) ou psicopedagógica (quando a criança apresenta, por exemplo, um déficit de memória ou falta de motivação para a leitura). Piaget (1975)
A dislexia passou a ter uma explicação mais plausível com a vinculação da linguagem à cognição, no ¬chamado cognitivismo. A aquisição e o desenvolvimento da linguagem são processos, segundo a teoria cognitivista, derivados dos processos do desenvolvimento do raciocínio na criança. Por isso, os que desejam saber mais dislexia precisam também saber mais sobre a linguagem oral, escrita, o processamento da informação, enfim, a criança e os estágios do desenvolvimento cognitivo à luz das teorias piagetianas. Piaget (1975)
Todavia, é bom lembrar que Piaget, assim como Vygotsky não estão interessados diretamente em assuntos lingüísticos ou patológicos da aquisição da linguagem, mas na relação linguagem / pensamento. Estão sempre preocupados com a epistemologia da linguagem. Aqui, então, podemos explicar o disléxico como alguém que é capaz de construir estruturas (conhecimento) com base na experiência com o mundo físico, ao interagir e ao reagir biologicamente a ele, no momento da interação. Piaget (1975)
Graças às teorias piagetianas ou construtivistas não se vê o disléxico como um doente ou paciente, mas como alguém saudável que apresenta dificuldade na aprendizagem da linguagem escrita, no momento de interação com o sistema de escrita (bastante complexo) e com os falantes de sua língua materna (marcada pela diversidade regional, por exemplo).
Dislexia e estágio sensório-motor - Neste estágio, não se pode apontar com segurança se uma criança sofre ou não de dislexia, em que pese o atraso na fala ter um caráter preditivo no que se refere à dificuldade em leitura a partir dos seis anos de idade, quando se espera que já seja alfabetizado em leitura. Piaget (1982)
Como dizer com segurança se uma criança, na educação infantil, apresenta dislexia? A desconfiança de um problema futuro com a linguagem escrita, por apresentar déficit de fala, é um indício forte, mas, seria precipitação do professor ou dos próprios pais o rótulo de "disléxico" para toda criança que, na educação infantil, tem atraso na fala ou uma fala confusa.
Este estágio vai do nascimento aos dois anos de idade. Neste estágio, é possível desconfiar, em algumas crianças com risco em dislexia, das suas dificuldades no reconhecimento imediato das palavras conhecidas, especialmente rótulos.
A respeito dos rótulos, tão freqüentes na pedagogia construtivista ou método global de leitura, vale destacar que os rótulos são aqui definidos como impressos, afixados em recipientes e embalagens, que apresentam informações sobre o produto ali contido (p.ex., sua marca, principais características, apelos mercadológicos, nome e endereço do fabricante, peso, composição, teor alcoólico etc.). Piaget (1975)
Assim, as dificuldades iniciais dos "virtuais disléxicos", na educação infantil, se dariam, a partir dessa abordagem, quando a criança deixa de memorizar os rótulos, sem fazer uma associação, que considera, em princípio arbitrária, entre uma nova forma escrita e uma outra forma que ela já conhece.
Em todo caso, vale lembrar que, neste estágio de desenvolvimento cognitivo, não há, ainda, a mediação fonológica uma vez que não está alfabetizada em leitura. Pelo menos, não é na educação infantil que criança, no ambiente escolar, precisa aprender a ler no sentido de decodificação leitora, mas, claro, poderá a ler o mundo, na perspectiva mais ampla, através das várias manifestações dos signos visuais, lingüísticos, icônicos e símbolos a que estamos imersos na sociedade letrada. Piaget (1982)
Dislexia e estágio pré-operacional – Neste estágio, pode ser levantada a suspeita de dislexia no caso de insensibilização do educando às rimas. Este estágio vai dos dois aos sete anos de idade. Esta insensibilização à rima pode ser explicado pelo déficit fonológico dos disléxicos que diante de textos em versos, por exemplo, deixam de perceber: Piaget (1982)
1) a reiteração de sons (vocais, consonantais ou combinados) iguais ou similares, em uma ou mais sílabas, geralmente, acentuadas, que ocorrem em intervalos determinados e reconhecíveis;
2) o apoio fonético recorrente, entre dois ou mais versos, que consiste na reiteração total ou parcial do segmento fonético final de um verso a partir da última tônica, com igual ocorrência no meio ou no fim de outro verso. Os disléxicos desenvolvimentais são potencialmente disléxicos fonológicos.
Dislexia e estágio operatório-concreto – em se tratando de idade vai de sete ou 8 a 11 ou 12 anos de idade. É o estágio da construção da lógica. Crianças, por exemplo, que têm dificuldade de fazer a correspondência entre letras e fonemas, isto é, de perceber o princípio alfabético do sistema de escrita da sua língua materna, são aspirantes à dislexia. Aqui, sim, uma criança não tem assegurado no seu aprendizado o princípio alfabético tem tudo para apresentar dificuldade em ler um texto, seja em prosa ou em verso. Piaget (1982)
Como decantar um texto escrito senão pela conversão dos grafemas em fonemas ou sons da fala? Mesmo que cogitemos, à luz das teorias construtivistas ou inatistas, aqui, que as crianças trazem consigo um "potencial leitor" e que poderão, uma vez estimulados, pedagogicamente, a ler os textos com seus conhecimentos prévios, portanto, ler o texto antes de decodificá-los, aos 8, 9, 10, 11 ou 12 anos, esperamos, como educadores, que tenham aprendido a soletrar palavras, frases e tenham, pois, a proficiência literal em leitura inicial.
Os disléxicos cometem erros visuais e, em geral, negam-se a responder questões de compreensão literal do texto lido, utilizando, quase sempre, estratégias grafêmicas parciais que podem estar em desacordo com seu estoque de fonemas e grafemas do sistema escrito de sua língua materna.
Dislexia e Estágio operatório-formal – Este estágio vai de 11 ou 12 anos em diante, fase em que a criança raciocina. Crianças que aprendem a deduzir informações, aprendem a aprender. Aqui se espera que a criança já tenha a automatização dos processos de leitura, em que pode realizar uma leitura de texto com fluência, rápida, uma vez que a criança não efetua mais uma decodificação sistemática da seqüência ortográfica da palavra. Piaget (1982)
Os disléxicos, neste estágio, dão aos professores, seus grandes observadores, os primeiros indícios de suas dificuldades leitoras, escritoras e ortográficas, ao conseguirem, inesperadamente, depois de tantos anos de bancos escolares, a automatização leitora, fracassando na hora de ler um texto em voz alta ou de soletrar algumas palavras não familiares, e, com isso, em geral, acabam perdendo um tempo precioso na leitura eficaz ao se concentrarem no tratamento das letras que constituem as palavras, a fim de decodificá-las para não errar, o que acaba por conduzir a leitura de forma lenta, sofrível e analítica. Piaget (1982)
No discurso dos pais e educadores, o "defeito inesperado" na leitura dos disléxicos, em geral, com quociente de inteligência acima da média, gera uma gama de reações inusitadas e, por isso, surgem rótulos, dentro e fora da escola, do tipo: meu filho ou meu aluno tem uma leitura abrupta, acidental, brusca, casual, episódico, impensada, imprevisível, imprevista, incalculada e incomum.
A leitura, sim; o leitor, não. A leitura em voz dos disléxicos poderá ser assim percebida pelos que estão ao seu redor, mas, não tenhamos dúvida, eles, os disléxicos, já buscam compensações para superar suas dificuldades específicas, o que certamente exigirá dos que atuam no campo educacional, um princípio de tolerância no desenvolvimento da capacidade de aprender a ler desses alunos especiais.

Numa palavra, os disléxicos requerem uma intervenção paciente e encorajadora dos que realmente têm a vocação de ensinar a crianças, jovens ou adultos inteligentes e interessados em aprender, mas com necessidades educacionais especiais e que nos levam a entender que as diferenças lingüísticas nos tornam mais especiais, belos e excelentes aos olhos magníficos dos homens e ao olhar eternamente magnânimo de Deus.

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